quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Virou Bagunça *

A melhor reportagem sobre corrupção publicada nos jornais de terça-feira não envolve nenhum político ou autoridade. Saiu no Correio Braziliense: "Aprendizes de mensaleiros presos pela PF". Eram alguns vigaristas que pegavam grana com empresas e fazendeiros sob o argumento de que depois pagariam o triplo aos contribuidores de campanha, com dinheiro do caixa-dois.

Foi a principal reportagem do jornal, com manchete e tudo. No texto bem-sacado de Ugo Braga:

"O deputado Doutor Ronaldo não é mensaleiro nem sanguessuga. Não participou de nenhum dos muitos esquemas, grandes ou pequenos, descobertos nos subterrâneos do Congresso Nacional nos últimos anos. O senador Guimarães também. Jamais foi flagrado em negociatas com o governo. Mesmo assim, o primeiro está preso desde ontem. O outro, depois de fugir do cerco, ainda é perseguido pela Polícia Federal. Juntos, eles roubaram aproximadamente R$ 4 milhões de pelo menos 60 vítimas, entre pequenos empresários e fazendeiros. As acusações: formação de quadrilha e estelionato.

O deputado Doutor Ronaldo jamais teve votos. Sequer participou de eleição. Na verdade, era um personagem fictício, criado pelo estelionatário Elias José da Silva - morador do Gama, preso ontem, na Operação 3 por 1 deflagrada pela PF - para aplicar golpes país afora. Como em 100% dos casos de estelionato, o crime se amparava na poderosa retórica dos criminosos. No popular, os integrantes da quadrilha só conseguiam sucesso porque eram bons de papo. Tal característica, como se sabe, é comum também aos políticos."

E por aí segue o texto. Coloquei na seção "O Melhor do Jornalismo" por três motivos.

Primeiro: ela foi exclusividade do Correio Braziliense, pelo menos com esse tratamento. Possivelmente só esse repórter viu notícia no caso, talvez por levar em conta os dois itens seguintes. Numa eleição tão morna de pautas, é um deleite ler uma reportagem que fuja ao registro do Gre-Nal partidário.

Segundo: ela mostra o quanto os escândalos recentes estão enraizados no imaginário popular, mesmo que os eleitores – incluindo os que têm algum dinheiro pra cair em golpes – não saibam bem quem são os parlamentares. Quem acompanha a política sabe que não há nenhum deputado chamado “Doutor Ronaldo”, embora a alcunha seja certamente inspirada nos nomes eleitorais de vários deputados. Mas percebam - mesmo sem saber quem é o sujeito que oferece a negociata, 60 empresários entraram nela alegremente, com vultosas somas em dinheiro. Quem já não ouviu na rua, no bar ou no táxi, expressões como "eu também queria"?

Terceiro: em todas as reportagens feitas com os partidos de verdade sobre doações de campanha, sempre se lê reclamações de como as fontes de contribuições secaram. Isso é afirmado como uma forma de negar a existência do caixa-dois – fenômeno que, por sua natureza clandestina, é praticamente indetectável sem que haja lapsos de quem dele participa. Obviamente o esquema do "Doutor Ronaldo" não era exatamente caixa-dois, mas tem a ver com o mecanismo. E, claro, com a esculhambação que virou a coisa toda, mas aí voltamos ao item anterior.

O texto é uma aula de jornalismo. Pra quem aprecia, pra quem estuda e pra quem está no dia-a-dia suado da profissão.

* Texto extraído do Blog "Deu no Jornal"
http://deunojornal.zip.net/

3 comentários:

Diego Mascarenhas disse...

Não reclamem do tamanho do post, caros colegas.
O povão pode ter preguiça. Os jornalistas não!

Anônimo disse...

e por acaso os jornalistas tb não fazem parte do povo??
até hoje nao sei quem é o povão!
não menosproze o cidadão médio e o trabalhador brasileiro.

Diego Mascarenhas disse...

eu não menosprezo. você quem sempre diz que não esses textos grandes ninguém lê.
já que vc pensa assim, pelo menos nós devemos ler...